Por uma economia radical feminista
“O capitalismo também depende do trabalho doméstico”' (1970s-80s) poster por See Red Feminist silk-screen collective

Por uma economia radical feminista

Assim como muitas amigas que batalham há anos para levar a conscientiza??o de gênero na sociedade, nas organiza??es ou apoiando a sustenta??o de coletivos feministas, eu fiquei extremamente emocionada em ver o tema da reda??o do Enem “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”. S?o cerca de 4 milh?es de jovens que se debru?aram no último domingo sobre o tema para ingressar no ensino superior, isto é, toda uma nova gera??o refletindo sobre o impacto do trabalho de cuidado n?o remunerado na vida e saúde mental das mulheres, em especial das mulheres negras, onde toda a organiza??o social do trabalho está centrada. Afinal, s?o as mulheres que mais sentem o peso das tarefas domésticas e do cuidado com outras pessoas. Elas dedicam, em média, 21,3 horas semanais para isso, enquanto os homens despendem pouco mais da metade desse tempo (11,7 horas semanais).?

Elas s?o responsáveis por 75% do trabalho de cuidado n?o remunerado realizado, somando, diariamente, mais de 12 bilh?es de horas gastas por mulheres e meninas em todo o mundo. O trabalho doméstico n?o remunerado representa 13% do PIB mundial. Esse trabalho gera 10,8 bilh?es de dólares à economia do mundo e em reais chega a 50 trilh?es reais – valor que é três vezes maior que o setor de tecnologia global, por exemplo – segundo dados da Oxfam Brasil de 2020.

Aproveitando que o tema está em destaque, e que no último ano eu aprofundei os meus estudos de Gênero fazendo mestrado na London School of Economics and Political Science, onde tive a oportunidade de cursar a disciplina “Economia Feminista”, trago alguns conceitos para refletirmos e caminhos possíveis para levar a efetiva justi?a de gênero.

Contextualiza??o

Os primeiros debates sobre trabalho doméstico aconteceram nas décadas de 1960 e 1970 nos EUA e Reino Unido. Os principais questionamentos eram que os lares domésticos eram também locais de produ??o. As principais quest?es na época levantadas foram: Quais s?o as condi??es e restri??es do trabalho doméstico? Como o valor é determinado? Como se relaciona com a acumula??o capitalista?

A discuss?o sobre a invisibiliza??o do trabalho doméstico e n?o remunerado está centrada na divis?o sexual do trabalho nas sociedades capitalistas, onde há a separa??o daquilo que é considerado ‘trabalho’, produtivo, remunerado, e aquilo que é considerado ‘n?o trabalho’, reprodutivo, n?o remunerado. A partir dessa divis?o e a separa??o ideológica entre o trabalho dos homens realizado fora de casa e as atividades n?o mercantis realizadas em casa pelas mulheres que a invisibiliza??o do trabalho n?o pago está localizada. Vale lembrar que antes da industrializa??o, no entanto, tanto o trabalho produtivo quanto o reprodutivo eram organizados quase que exclusivamente no nível familiar.

Ent?o o trabalho passou a ser convencionalmente considerado bens e servi?os comercializados. Já o trabalho reprodutivo, como explica a socióloga Evelyn Glenn, é o envolvimento do trabalho mental, emocional e manual organizado de inúmeras formas como dentro e fora do lar, remunerado e n?o remunerado, criando valor de troca ou uso de forma n?o mutuamente exclusivas.?

Entretanto, apenas o trabalho na esfera produtiva é considerado ‘valioso’ e recompensado com um salário, na esfera reprodutiva, n?o. Logo, podemos assumir que o trabalho reprodutivo é uma pré-condi??o para o capitalismo, pois necessita de uma for?a de trabalho qualificada e disposta.

Ainda, o que é consistente entre as sociedades capitalistas é que o trabalho reprodutivo é construído eminentemente por mulheres negras e étnicas. Portanto, o entendimento de que gênero e ra?a foram construídos e moldados socialmente pela sociedade do trabalho nos permite pensar como a maternidade e o trabalho doméstico s?o diferentes para mulheres brancas e negras.?

Os homens acabam se beneficiando direta e indiretamente desse arranjo, indiretamente porque gozam dos benefícios prestados pelas mulheres dentro de casa e indiretamente porque possuem mais energia para se dedicarem ao trabalho produtivo e alcan?arem destaque naquela área. Portanto, há uma retroalimenta??o entre o trabalho reprodutivo realizado em casa e o trabalho produtivo realizado no mercado de trabalho. Por conseguinte, a socióloga Joan Acker ressalta que para o trabalhador ideal estar ativo e produtivo, tanto a sexualidade, como o trabalho de cuidado e as emo??es s?o quest?es vistas como “perturbadoras” da ordem disciplinar e, portanto, devem ser excluídas da organiza??o social do trabalho.

Os corpos das mulheres, sua sexualidade, sua capacidade de gerir uma vida, menstruar, amamentar, cuidar de seu bebê e se emocionarem s?o vistos como estigmas e usados como mecanismo de controle e exclus?o.


A redu??o do papel do cuidado como agenda política liberal

Com o avan?o do neoliberalismo e do exugamento das políticas de bem estar social nas sociedades capitalistas, o conceito de reprodu??o social passa a ser central para entender a reprodu??o das desigualdades de gênero, sobretudo o aumento significativo do trabalho reprodutivo das mulheres e a ‘feminiza??o do emprego’, isto é, a precariza??o da m?o de obra, a flexibiliza??o e a informaliza??o do trabalho com um crescimento substancial do setor de servi?os e do trabalho de cuidado.?

Enquanto isso, o trabalho do cuidado passa a ser comodificado, isto é, atividades como preparar alimentos em restaurantes, cuidar de pessoas com deficiência e idosos em asilos, cuidar de crian?as em creches, apoio emocional em consultórios, passam a fazer parte de uma agenda liberal mais ampla.?

Como argumenta a professora de economia ?lkkaracan, quem goza do acesso a esses tipos de servi?os é quem tem condi??es de pagar, impondo cada vez mais à grupos sociais menos favorecidos a disponibilidade de tempo para cuidar e energia. Nesse sentido, a diminui??o da capacidade e disposi??o da sociedade para cuidar de crian?as, idosos, pessoas com deficiências, pessoas doentes, bem como nós mesmos, é fruto do sistema econ?mico e de uma agenda liberal.

Aumento da mercantiliza??o do trabalho doméstico:

  • Para quem pode pagar, é realizado em grande parte por mulheres negras, étnicas e migrantes;
  • Mulheres negras, étnicas e migrantes s?o pressionadas por absorver um trabalho precarizado, informalizado, instável e vulnerável.

Portanto, o emprego e a mobilidade laboral no setor dos cuidados respondem e criam novos mercados fazendo parte da expans?o da mercantiliza??o e privatiza??o.?

Por uma Economia Feminista

“Se quisermos medir e otimizar, como fazem os economistas, o bem-estar humano, devemos nos preocupar com o trabalho do cuidado porque a organiza??o do trabalho do cuidado acaba interagindo com toda a economia e, portanto, se negligenciarmos esse trabalho, a análise n?o será rigorosa” - Diana Strassmann?

Para compreender como a política e a teoria macroecon?micas têm sido abordadas a partir de uma perspectiva cega de gênero e como isso gera problemas econ?micos particularmente ao afetar desproporcionalmente a vida das mulheres, os seus direitos e a justi?a de gênero, é essencial compreender o conceito de macroeconomia. Emma Bürgisser argumenta que a política macroecon?mica se baseia em decis?es econ?micas a nível nacional, centrando-se na compreens?o de como o país arrecada dinheiro, quanto é arrecadado, por exemplo, através de impostos, e como escolhe gastar esse dinheiro. Em outras palavras, as políticas macroecon?micas visam objetivos amplos da economia como um todo, tendo como indicadores do bem-estar da sociedade ligados ao crescimento econ?mico, ao desemprego, à infla??o e à balan?a de pagamentos. Diana Strassmann afirma que se quisermos medir e otimizar, como fazem os economistas, o bem-estar humano, devemos preocupar-nos com o trabalho de cuidado porque a organiza??o do trabalho de cuidado acaba por interagir com toda a economia e, portanto, se negligenciarmos esse trabalho, a análise n?o será rigorosa. Desta forma, a perspectiva feminista apresenta uma abordagem radicalmente diferente da dos economistas neoclássicos. Estes partem da premissa de que os recursos s?o escassos, os desejos humanos s?o ilimitados e que as pessoas se comportam com o fim de maximizar os seus ganhos e alocar recursos para maximizar a utilidade.

Por outro lado, a perspectiva econ?mica feminista reconhece a interdependência nas rela??es humanas, o papel da coopera??o, do altruísmo e das emo??es como elementos cruciais da dimens?o humana que se refletem na tomada de decis?es. Além disso, o papel da produ??o e reprodu??o social, do trabalho remunerado e n?o remunerado e como as rela??es laborais s?o moldadas por gênero, ra?a e classe. Como argumenta Glenn, compreender como os eixos de ra?a e gênero moldaram o mercado de trabalho das mulheres é compreender como esses sistemas socialmente construídos se organizam em torno das desigualdades, sendo um contraponto às tendências universalizantes do pensamento feminista onde elas percebem o trabalho reprodutivo apenas como gênero. Uma economia que ignora metade da popula??o e o trabalho n?o remunerado apresenta graves falhas correspondendo a um viés de gênero nas políticas macroecon?micas.?

"A nova economia política precisa incorporar uma agenda de pesquisa que permita uma análise do doméstico, ao lado do econ?mico e do político, se quiser abordar as quest?es-chave do próximo século" - Diane Elson

Como seria ent?o uma política macroecn?mica que considera as rela??es de poder, as desigualdades de gênero, ra?a e classe e o seu impacto na economia? Como seria se colocássemos a economia do cuidado no centro do desenvolvimento sustentável? Ou a análise de um PIB que efetivamente leva em conta o bem-estar humano? Para isso, precisaríamos de uma reforma radical do pensamento da economia onde o “homo-economicus” racional está definitivamente ultrapassado, onde as pessoas est?o acima do lucro e s?o colocadas no centro das políticas, onde a economia do cuidado é vista como inegociável para uma sociedade inclusiva, sustentável e regenerativa. Uma reforma radical do pensamento econ?mico que n?o separa o “Eu”, o “Outro” e a “Natureza”.


*Sobre Carine Roos: mestre em Gênero pela London School of Economics and Political Science - LSE. Também é pós-graduada na Faculdade Israelista Albert Einstein em Cultivando Equilíbrio Emocional nas organiza??es e atua como especialista em Diversidade, Equidade e Inclus?o há 10 anos. Lidera a Newa, empresa de impacto social que prepara organiza??es para um futuro mais inclusivo por meio de sensibiliza??es, workshops, treinamentos e consultoria de diversidade.

Marianne Costa

Promovo experiências no Brasil que geram renda e inclus?o, preservam a natureza e transformam vidas.

1 年

Obrigada pelo artigo Carine Roos ???????? estou lendo “Manifesto Maternalista”, da Vera Ianconelli e conversa demais com tudo que você trouxe, do ponto de vista da psicanálise! é preciso entender de onde partimos para fazer as mudan?as que precisam ser feitas.

Mariah de Freitas

Head de PR | Assessora de Imprensa

1 年

Muito interessante, Cá. Ontem li uma matéria da Forbes Mulher sobre o tema com dados que me chamaram aten??o, além desses que você destacou. é muito muito importante termos essa consciência. Entender o que tudo isso significa para uma sociedade que deve buscar mudan?as pra ontem, é um trabalho de todos, ao meu ver. Feliz do ENEM destacar esse tema e trazer esse olhar para as gera??es mais novas.

Gabriele Costa Bento Garcia

Dreamer | Mother, Lawyer, and social entrepreneur | Peace and Human Rights Educator | MSc Human Rights LSE | Dalai Lama Fellow | Chevening Alumni | Ashoka Spiritual Changemaker | Rede de Líderes da Fund. Lemann

1 年

Ca, muito obrigada pela vis?o panoramica que vc nos oferece lendo esse artigo t?o educativo. Que ele chegue longe e possa pautar reflex?es responsáveis sobre o tema!

Quando as mulheres finalmente conquistarem o espa?o que lhe cabe e poderem assumir as rédeas da economia, com certeza, passaremos de um capitalismo selvagem para um capitalismo humano. Essa nova gera??o já está tomando essa consciência, pois, 61,3% dos candidatos ao Enem s?o mulheres. Outro dado que achei interessante é que segundo o Inep s?o 9.475 pessoas de 60 anos ou mais que estavam inscritos na prova em todo o Brasil. Como seu texto faz um apanhado histórico bastante profundo, fico pensando nessas pessoas que viveram e vivem isso na pele.

Agatha Valentin

RP | Executiva de Atendimento na PinePR

1 年

Tema super necessário, Ca! ótimo artigo

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